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Feira de Santana / 25 de setembro de 2020 - 04h 37m

Quem é você no balaio do Magazine Luiza?

Compartilhamento Social

Por Daniele Britto

Nos últimos dias, acompanhei uma diversidade de opiniões sobre algumas questões envolvendo gênero, raça e sexualidade, marcadores que fazem parte dos meus estudos e que tem relação direta com os direitos humanos, também objeto das minhas pesquisas. Se você se surpreendeu em saber que direitos humanos vai além do “leve o bandido pra sua casa” recomendo que prossiga com a leitura.

Três temas foram, particularmente, relevantes: a decisão liminar do STF que permitiu que já nas eleições de 2020 valesse a implementação das cotas raciais proporcionais de distribuição de verbas públicas para financiamento de campanha e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão; a seleção de vagas para trainee do Magazine Luiza que abriu vagas exclusivamente para negros e, por último, o caso do estudante gay barrado em um mercado em Salvador por conta do short curto.

Aparentemente estes três acontecimentos não tem conexão, mas isso é só aparentemente. Farei as minhas considerações utilizando como mote as repercussões e características de cada fato.

Conforme matéria publicada no Jornal Folha de São Paulo em 23/09/2020 (encurtador.com.br/eqEIQ), diversos líderes partidários foram contra a aplicação imediata das cotas raciais, alegando ser inexequível tal decisão, posto que as cotas já foram “divididas” internamente. Obviamente alegaram isso porque não quiseram deixar (ainda mais) explícita a necessidade da manutenção do racismo estrutural que impede uma representatividade que se aproxime da realidade.

A possibilidade de remover negros e negras dos papéis de subalternidades impostos  há séculos incomoda. Dados do projeto “Democracia e Representação nas Eleições de 2018: Campanhas Eleitorais, Financiamento e Diversidade de Gênero” (https://tinyurl.com/y2qdq6s3 ) realizado pela faculdade de Direito da FGV de São Paulo mostra o quanto as candidaturas de homens negros e mulheres negras são subfinanciadas, mesmo entre aqueles considerados competitivos. Um exemplo é que homens brancos representam 43,1% de todos os candidatos, mas concentram cerca de 60% das receitas de campanha. Qual a surpresa dentro da nossa colonialidade patriarcal? Nenhuma.

Na mesma matéria da Folha, outra alegação chama a atenção: um dos líderes afirma que as acusações de candidaturas laranjas de mulheres são injustas, pois, não existem mulheres que queiram se candidatar e as que se candidatam, não tem voto. Considerando-se que as mulheres são mais da metade da população brasileira e representam mais de 52% do eleitorado, o que justificaria apenas os 15% de representação legislativa federal? Destaco que a mesma pesquisa informa que o Brasil tem uma dos piores taxas da presença de mulheres no Parlamento, o que não causa surpresa.

E a seleção para trainee do Magazine Luiza? Inicialmente, vamos aqui nos despir de qualquer espírito de justiça social efetiva, por favor! A ideia da empresa é válida, não há dúvidas. Como a própria gestão informou, pretos e pardos representam 53% dos funcionários da empresa, mas apenas 16% deles ocupam os cargos de chefes, diretores ou gerentes. Esta atitude não é exclusividade da empresa. A multinacional Bayer também tem um processo seletivo chamado “Liderança Negra, muito semelhante, bem como a 99Jobs e Accenture. Ações afirmativas são ótimas para a imagem de uma empresa. As ações da Magalu valorizaram de 2,6% no último dia 22 de setembro. Repito: esta foi uma ação acertada e positiva, sem dúvidas.
Sobre esta seleção, a grande polêmica gira em torno das alegações risíveis de “racismo reverso”, inclusive já rejeitadas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). A sobreposição da lógica capitalista em relação a uma ação afirmativa mostra o quanto a luta pela igualdade racial está longe de acabar. Em um país no qual a igualdade de oportunidades alcança índices de discrepância exorbitantes, o mito da democracia racial ecoa nas vozes de quem sempre teve a cor como privilégio.

Sobre o caso do estudante de psicologia barrado no Walmart em Salvador por conta, supostamente, do tamanho do short, são necessárias algumas pontuações: era um homem negro, gay e pobre. Não, está não é uma retórica cansada e “manjada”. Esta é a realidade imposta pelos nossos padrões brancos cis-hétero-cristãos que querem permanecer delimitando violentamente nossos corpos.

Homem (ou mulher) tem que ser heterossexual. Homem não usa short curto, pois isso não condiz com a cisgeneridade masculina. O homem negro carrega consigo uma suposta culpa inerente que sempre o desloca para a marginalidade. O marcador classe (homem pobre) soma-se aos demais e fortalece ainda mais as vigilâncias da colonialidade, tão vivas e limitadoras. Ser gay é normal. Assumir-se gay, por todos os (poucos) motivos já expostos, é difícil. Ser preto e assumir-se gay acarreta consequências mais nocivas e, sem dúvidas, mais perigosas.

“Ah, mas o segurança também era negro”, ouvi de alguém. Este segurança, apesar de  negro, representa a força policial de um Estado que tinha como projeto apresentado no 1º Congresso Mundial das Raças, realizado em Londres no ano de 1911, uma estimativa que em 2012, não teríamos mais negros no Brasil.

O fato ocorreu 23 anos após a assinatura da Lei Áurea e é inegável que os seus fundamentos até hoje permeiam as nossas estruturas – brancas – de poder. Um exemplo: a Polícia Militar do Rio de Janeiro foi a primeira instituição policial criada no país, em 1809. O motivo foi claro: o temor de que o que ocorreu na Revolução do Haiti entre 1791 – 1804 “contaminasse os negros brasileiros”.

E o que aconteceu no Haiti? Os escravos se rebelaram, mataram e exterminaram os seus escravizadores franceses e o Haiti tornou-se o único país latino-americano a conquistar a independência com uma revolta feita por escravizados. Este “sucesso” inspirou aqui no Brasil a Revolta dos Malês, por exemplo, mas esta viagem histórica fica pra outro texto. Por que citei a PMERJ? Conforme dados do Monitor da Violência e IBGE, 80% dos mortos pela polícia no Rio de Janeiro são negros e pardos. Não, não é coincidência é história.

É urgente uma autocrítica profunda e lúcida das nossas existências. Se branco, se negro, se índio, homem, mulher, de todas as sexualidades existentes é necessário entender passado e presente e quem somos ou simbolizamos na sociedade.

O texto está escrito e cenas como as que relatamos aqui se repetem capítulo após capítulo na alucinante sociedade do espetáculo descrita por Guy Debord.

E então, qual é o seu papel?

 

Daniele Britto
Advogada e Jornalista
Mãe, feminista, antirracista e aliada na luta contra a homotransfobia
Pesquisadora no grupo Corpo-território Decolonial (Uefs)
Mestranda PPGE/Uefs


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