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CRÔNICA / 13 de novembro de 2023 - 03h 39m

O Nego Doce da Queimadinha

O Nego Doce da Queimadinha
Ilustração: Min Fersan
Compartilhamento Social

POR CAIO BATISTA

Apenas mais uma de amor.

Aliás, “apenas” não. Em se tratando de amor, jamais podemos tratar como mais um, com descaso. É fato que é uma instância da vida moderna que anda meio desprestigiada, mas, como já diria o provérbio do trovador mineiro, “todo amor é sagrado”. É bem verdade também que eu, particularmente, não sei exatamente como gerir toda essa importância e me vejo “da sala pra cozinha”, quando amigos vêm pedir aconselhamento sobre como se organizar com essas questões – mas, mesmo assim, vou tentando ajudar, ainda que atabalhoadamente. A desesperada da vez foi uma amiga que vem passando por meses de muito desgosto motivado pelos inúmeros romances que não vão muito além do flerte ou de encontros fugazes, o que acaba só trazendo trauma à coitada. Ela me explicou que a decepção é tamanha que deixou de lado qualquer esperança de novos relacionamentos e mal anda saindo de casa para fins de enlace amoroso. Ainda assim, mesmo sem nenhum esforço, mantém uma esperança inabalável de que o seu vindouro grande amor apareça, de bobeira, na porta de sua casa. Pois veja…

 

Esclareci à amável amiga que ela deveria deixar de lado essa cega certeza no Princípio Meneghel – aquele que prevê que “tudo que eu quiser, o cara lá de cima vai me dar”, e o mesmo que me fez perder de uma vez qualquer vestígio de fé que eu ainda tinha aos 10 anos, depois que eu desejei muito ganhar um Tamagochi e acabei ganhando um Unhex numa raspadinha – e ir atrás dos seus objetivos. Ela me contrapôs com a justificativa do trauma pelas investidas fracassadas e então sugeri que ela fizesse um perfil na plataforma Tinder, onde poderia interagir com potenciais enamorados do conforto de sua casa. Ainda que um pouco relutante, ela TOPOU O DESAFIO.

 

A amiga se embrenhou nessa senda obscura de peito aberto e, após algumas invariáveis decepções, enfim, encontrou um patrício de seu agrado, que, por acaso, é súdito aqui da Princesa, residente lá da Queimadinha…

*

Foi só recentemente que toda essa epopeia ficou esclarecida para mim e uma outra camarada, que em um dado momento achou pertinente que buscássemos amparo na imprensa local – Zé Eduardo, o Bocão – tamanho foi o tempo que ficamos sem notícias daquela nossa amiga em comum. No dia em que, enfim, conseguimos contato com a sumida, ela nos informou que estava tudo em ordem e que naquele exato momento estava “quarando os quarto” – ou seja, pegando um bronzeado legal no dorso –, junto com o seu paquera, na Ribeira, lá em Salvador; disse ainda que logo mais iria nos encontrar para contar sobre as novidades.

 

Dois dias depois, quando finalmente nos vimos, ela confidenciou sobre a intensidade do que vinha vivendo nesses últimos dois meses que passou desaparecida: contou que encontrou com esse sedutor da Queimadinha em um momento em que já não tinha mais esperanças em novos amores e estava prestes a deixar de uma vez o Tinder.

 

Segundo ela, o que lhe causou encanto, a princípio, foram os atributos físicos do rapaz: negão, careca e aparentava ter em torno de 55 anos. Nas fotos do seu perfil na plataforma, ele estava sempre usando camisas bem justas ao corpo – o que salientava a circunferência envolvente do seu abdômen –; correntinha de prata igualmente justa no pescoço; bermudas em tons claros com rasgos na região da coxa, o que ela atribuiu a uma tentativa de mostrar que ele era intenso; e mocassins bem empastados. Após um gostoso bate-papo onde ficaram esclarecidas as demais credenciais do rapaz, marcaram um encontro. Para o fascínio de nossa amiga, o amante latino foi ao date com seu Monza 97 de cor vinho e bancos de veludo.

 

No primeiro encontro, seguiram para Cabuçu e ela declarou que se perdeu toda quando viu o moreno com uma sunga branca e um batidão que ia até quase o umbigo. Durante o papo, entre uma Devassa e uma moqueca de siri catado, ele confessou que gostava de uma gafieira e nesse momento ela disse que já estava rendida de paixão. Sua intuição dizia que aquele era um “kit” muito perigoso, mas ela já não conseguia mais voltar atrás em suas ações.

 

No fim de semana seguinte, na sexta, ele mandou uma mensagem bem dengosa, às 6h30, dizendo que iria passear com o papa-capim – como de praxe – e “atualizar o disfarce”, ou seja, raspar os poucos folículos que vigoravam em sua cabeça e “amolar” o cavanhaque, e pediu que ela ficasse atenta que poderia haver alguma surpresa durante aquele dia. Eis que, ao fim da tarde, o moreno apareceu em sua casa, com a habitual indumentária que tinha feito nossa amiga se apaixonar e a tez hiper lustrosa pelo hidratante que acabara de usar no pós-banho. O rapaz exalava encantos e ela estava cada dia mais refém daquele poço sem fim de sensualidade.

 

A surpresa, finalmente, seria um fim de semana com ele aqui na Queimadinha e ela aceitou o convite sem pensar duas vezes. Naquele mesmo dia estiveram em uma seresta lá em São José e terminaram a noite em uma petiscaria no Tomba. Após uma madrugada de intensa troca amorosa, a nossa amiga acordou às 10h30 do sábado, com uma playlist que tocava desde o romantismo de Zezo Potiguar até o – não menos romântico – pop ambiental do Cidade Negra. Por toda a casa podia-se sentir uma penetrante fragrância de dendê com ervas finas: era a moqueca de cavalinha, especialidade do dono da casa, que tinha preparado para agradar a sua cremosa. Enfim estava acontecendo o #sextou de princesa que há tempos ela sonhava e que viria a se repetir por diversos outros fins de semana, o que só aumentou progressivamente a intensidade daquele romance.

*

Após dois meses de muito amor, durante um certo domingo, eles foram acordados por gritos vindos do portão: era a ex-mulher do rapaz que viera deixar os dois filhos do casal para passar o fim de semana com o pai. Enciumada, a ex aproveitou para desmoralizar a honra de nossa amiga que mal sabia o que estava havendo.

 

Por aqui se faz necessário não adentrar em outros detalhes sobre o episódio, tamanha a deselegância e explicitude dos fatos, mas nessa mesma oportunidade, nossa amiga, que não tinha dimensão do tamanho da enrascada, soube que o sedutor da Queimadinha tinha mais uma ex-mulher e um total de 7 herdeiros distribuídos por 4 progenitoras; isso sem contar que mantinha enlaces paralelos com vizinhas e colegas de trabalho.

O desalento voltou a habitar o peito de nossa amiga e ela veio até nós querendo consolo. Como alento, ofereci minhas palavras mais ternas e gentis palavras, afirmando que logo menos ela estaria plenamente recuperada desse trauma. A outra amiga, contudo, foi mais categórica e pedagógica: “Tá vendo aí, isso é para você aprender, puta. Tu dá moral a calvo e ele age como se a calva fosse você”.

*Caio Batista é um jornalista baiano que escreve sobre o recôncavo e agora sobre Feira de Santana.


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