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Artigo jurídico / 27 de agosto de 2022 - 06h 00m

O caso Daniella Perez e alterações legislativas

O caso Daniella Perez e alterações legislativas
Compartilhamento Social

Hiran Coutinho Jr. (@hirancoutinho)

Cláudia Lopes (@claul_)

Estudar a origem das coisas e dos seus significados é importante para delimitar o período em que vivemos. É atestado, por exemplo, que o termo hediondo advém da palavra foetibundus – latim – que, por sua vez, representa algo malcheiroso, fétido, que causa repugnância.

Com a consequência dos anos, já no final do último século, a hediondez ganhou uma nova nuance: a legislativa. Isto, entretanto, não quer dizer que o termo perdeu o seu significado, mas certamente teve o poder de modificar certos sentidos. Para que o crime seja hediondo, conforme o Direito brasileiro, não são avaliados os seus adjetivos de maneira subjetiva e, portanto, não se sobressai aquele que é ou não asqueroso; o crime hediondo é, simplesmente, o previsto no rol taxativo da Lei 8072/90.

No último mês a discussão acerca dos tipos penais considerados hediondos voltaram ao debate social em razão do documentário que narrou o homicídio qualificado que vitimou Daniella Perez. A jovem atriz, filha da escritora Glória Perez, contracenava a sua terceira novela, em que fazia par romântico com o também ator Fábio Assunção. No curso da trama, a personagem de Daniella, Yasmin, viveu um romance intermediário com o personagem Bira, atuado por Guilherme de Pádua. Foi neste contexto que o final da história de vida real se apresentou com consequências bem piores do que qualquer ficção.

É narrado por aqueles que conviviam no estúdio, além dos familiares e amigos, que Guilherme teria iniciado certa perseguição em desfavor de Daniella. O mesmo teria começado a assediar a atriz, tanto no ambiente de trabalho quanto por meio telefônico, sempre com o pretexto de destaque ao seu personagem. Contudo, Daniella tinha o receio de que se realizasse denúncias ou contasse para sua mãe, escritora da novela, estaria prejudicando o rapaz que, obviamente, não imaginava ser capaz de cometer um ato cruel.

Infelizmente, na noite do dia 28 de dezembro de 1992, após sair dos estúdios da Tycoon, no Rio de Janeiro, Daniella nunca mais foi encontrada com vida.

Algumas horas depois, o seu esposo, Raul Gazolla, também ator, notou o desaparecimento. Dessa forma, comunicou a Glória Perez, a alguns amigos, a polícia, e se iniciaram as buscas. Ocorre que, no final do século XX os crimes contra o patrimônio que envolviam restrição da liberdade, especialmente a extorsão mediante sequestro (popularmente conhecido apenas como sequestro) estavam, cada vez mais, em evidência. Logo, esta foi a primeira preocupação dos familiares e amigos, que sabiam que a atriz carregava consigo certa quantia em dólar, que utilizaria para comprar um carro.

As buscas foram encerradas naquela mesma noite, quando encontraram o corpo da atriz próximo a uma estrada. No início do dia, a polícia já havia determinado o principal suspeito do assassinato, o colega de trabalho de Daniella, Guilherme de Pádua. Mas isso não cessou as polêmicas, muito menos a própria investigação criminal, pois nos dias seguintes também fora realizada a prisão da esposa de Guilherme, Paula Thomaz.

Guilherme e Paula foram condenados em 1997, com penas de 19 e 18,5 anos de reclusão, respectivamente, tendo se beneficiado da liberdade condicional em 1999, após o cumprimento de, aproximadamente, 7 anos de prisão. Aqui, cumpre ressaltar que à época dos fatos, o homicídio, seja na modalidade simples ou qualificada, não era considerado como crime hediondo, e que, o instituto do Livramento condicional (art. 83 do Código Penal) era possível após o cumprimento de 1/3 da pena (requisito objetivo), desde que cumprido outros aspectos subjetivos referentes ao comportamento carcerário do apenado.

Pois bem. Em que pese, juridicamente, o processo penal ter início, meio e fim, neste caso é possível perceber que não se resumiu aos limites das linhas do judiciário. Além do triste assassinato de Daniella ser lembrado até os dias de hoje, 30 anos depois, o mesmo impulsionou um embate, popular-legislativo, consubstanciado na luta de uma mãe para alterar a lei de crimes hediondos.

Retornado aos crimes hediondos, em 1992 (ano do crime) a recente legislação agravadora, que tinha como fim punir tipos penais de forma mais rigorosa, ainda não havia sofrido alterações. Como foi mencionado nas linhas acima, naquele período os crimes de natureza patrimonial eram insistentes e, portanto, este fora o cerne da lei. Àquela época estavam elencados como infrações penais hediondas no caput do art. 1º da lei 8072/90, os seguintes crimes: latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante sequestro e na forma qualificada, estupro, atentado violento ao pudor, epidemia com resultado morte, envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte, e de genocídio, tentados ou consumados.

Este era o rol das condutas penais consideradas hediondos quando da promulgação da legislação ordinária, além dos equiparados constitucionalmente (tortura, tráfico de drogas e terrorismo). É notório que se deu especial atenção aos crimes de natureza patrimonial e àqueles preterdolosos (quando coexistem os elementos dolo e culpa para cada resultado), não estando destacados qualquer dos crimes dolosos contra a vida.

Nesse diapasão, da premissa de que os homicídios qualificados deveriam ser considerados hediondos, nasceu a luta de Glória Perez, junto a outras mães que tiveram seus filhos assassinados, para utilizar o art. 61, §2º da Constituição Federal (iniciativa popular) como meio de realizar a alteração legislativa. Em respeito à Lei Maior, é necessário que o projeto de lei seja subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

Com a arrecadação de 1,3 milhão de assinaturas, o projeto se transformou na lei 8930/94, que alterou o texto da lei 8072/90 para constar o seguinte tipo penal ao rol de crimes hediondos: homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV e V).

A atuação foi marcante. A insistência levou à primeira alteração legislativa em razão de iniciativa popular, pautada na Constituição cidadã que, naquela época, tinha apenas 5 (cinco) anos de existência. Ainda hoje, este projeto de iniciativa popular foi um dos poucos que obtiveram sucesso, acompanhado das leis 9.840/99 (Combate a Compra de Votos), 11.124/05 (Fundo Nacional de Habitação e Interesse Social) e 135/2010 (Ficha Limpa).

Não obstante, outros crimes de grande repercussão também deram razão a construções de instrumentos legislativos incriminadores ou de proteção, ainda que não tenham envolvido a participação popular de maneira direta, a exemplo da lei 12.737/12 (Lei Carolina Dieckmann), que dispôs sobre a tipificação criminal de delitos informáticos; a lei 13.010/14 (Lei do Menino Bernardo ou da Palmada), a qual alterou o Estatuto da Criança e Adolescente para proibir o tratamento cruel, degradante ou com uso de castigos físicos a crianças e adolescentes; e a mais recente lei 14.344/22 (Lei Henry Borel), que criou mecanismos de prevenção e enfrentamento da violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, além de alterar o código penal brasileiro para acrescer o inciso IX, que qualifica os crimes cometidos contra menores de 14 anos, e acrescer demais providências.

Os crimes hediondos não são suscetíveis de graça, indulto, anistia ou fiança.  Apesar de já declarado inconstitucional, possuem um regime inicial de cumprimento de pena mais gravoso, bem como apresenta período maior para concessão de certos requisitos, a exemplo da liberdade condicional e da progressão de regime. Atualmente, após diversas mudanças legislativas no rol de crimes hediondos e no tratamento empregado ao mesmo, podemos afirmar que o crime sofrido por Daniela Peres é considerado hediondo e o livramento condicional só seria possível após o cumprimento mínimo de 2/3 da pena, ou seja, exigiria o mínimo de aproximadamente 14 anos e não 7 anos como foi à época.

Após esta breve desenvoltura sobre os crimes hediondos, que possuem tratamento mais rigorosos, é preciso chamar atenção para um mandamento constitucional: não existem penas perpétuas, de trabalhos forçados, de banimento ou cruéis. O crime deve ser combatido com veemência, mas oportunizando a defesa, a paridade de armas e, ainda que exista uma condenação, indissociável a ela estará a ressocialização.

Portanto, em nada adianta o ímpeto ao extremismo. A constituição é cidadã e cada indivíduo condenado em solo brasileiro deverá, ou pelo menos deveria, ter igual tratamento e, por consequência, oportunidade de ressocialização para não voltar a delinquir. O Estado, pelo seu direito único de jurisdição, permanece imparcial e, nós, cidadãos voltados ao subjetivismo, não temos o direito de atirar pedras naqueles que foram condenados porque já não nos cabe o julgamento ou a execução da pena.


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