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Opinião / 19 de abril de 2023 - 09h 01m

Enfim, em Feira

Compartilhamento Social

POR CAIO BATISTA

Primeiramente, gostaria de deixar um aperto de mão bem carinhoso a cada um dos que vieram até aqui prestigiar esta minha estreia. Sejam muito bem-vindos! Nos dias de hoje tem sido tão difícil prospectar a leitura atenta de alguém por mais do que os protocolares 15 segundos dos stories das redes sociais, que qualquer meia dúzia de três ou quatro pessoas prestando atenção no que você fala já é uma glória tremenda.

Pois bem, com a licença de vocês três (ou quatro), queria deixar registradas as minhas credenciais: Eu me chamo Caio, tenho [CENSURADO] anos, sou cronista mundano de quase todo tipo de assunto e venho do Recôncavo. Sobretudo e antes de qualquer coisa, eu venho do Recôncavo.

Meu ufanismo é realmente descontrolado: não só levanto a bandeira, como visto a camisa e canto o hino – que no caso da nossa capitania é aquela canção Agora somos ex, de Nenho do Arrocha. Eu sou do Recôncavo com honras & louvor – e vou muito bem, obrigado! -, mas convenhamos que o Recôncavo é um ambiente de extremo rigor literário/jornalístico, com muitas ressalvas ao colunismo mundano, vocês devem saber bem. Por algum tempo, toquei uma coluna clandestina sobre tipos e fenômenos típicos àquela região e, infelizmente, fui descoberto e’ tive a minha carreira jornalística despedaçada. Não tinha a quem recorrer e passei a vagar errante atrás de novas pautas e fontes, somente com uma caneta, um bloco de notas, uma lapiseira e uma xerox do meu DRT em frangalhos. Naquela época, o desalento era tamanho que quase acabei sucumbindo aos ardis da criação de conteúdo para o tal TikTok. Mais do que um refugiado, eu era um farrapo editorial e vim buscar redenção nesta urbe tão bem-quista e, felizmente, fui acoitado: cheguei à entrada desta gazeta eletrônica que agora me abriga, e falei da minha ingrata condição: sou cronista e busco exílio editorial. De bate-pronto, eles me deram um banho de mangueira, desembaraçaram o meu cabelo, me ofertaram uma marmita e me dispuseram uma máquina de datilografia, com a qual batuco estas lamuriosas linhas aqui expressas.

Esse tipo de amparo tão gentil não é muito típico dos monarcas, vamos combinar, mas esta Princesa tem um jeitinho a sui generis de ninar e dar carinho, fato do qual tenho conhecimento já há bastante tempo e me ficou docemente marcado em outro episódio: lá se vão alguns bons anos que eu vim a um São Pedro na província de Humildes. Meu interesse maior, ao bem da verdade, era assistir ao concerto dos conjuntos Camutiê e Asas Livres e, sobretudo, prestigiar nos intervalos entre as atrações o animado set do DJ idoso Rob do Sobradinho. Como já fui DJ de colação de grau e venho pleiteando os direitos e prerrogativas da terceira idade há muito tempo, o corporativismo falou mais alto e eu não podia deixar de marcar presença.

Pois enfim… no correr da festa, eu – que, modéstia à parte, estava EXTREMAMENTE provocativo com uma saruel, regata xadrez e recendendo um refrescante bálsamo de alfazema & cravo – engrenei um romance selvagem com uma dama da região. Por ser nativa, ela sabia onde podíamos nos amar em reserva. Dessa forma, seguimos para uma rua mais afastada, que tinha as dimensões de uma pastagem, o cheiro de pastagem, o orvalho noturno das pastagens e de onde se podia ouvir mugidos de animais que claramente pastavam; mas, conforme a moça, se tratava ainda do perímetro urbano local, sobretudo, por conta da presença de um pardieiro e as cinzas de uma fogueira aparentemente apagada há um bom tempo.

O forte odor de fezes do lugar onde estávamos nos afastou, e a segurança da calçada do pardieiro nos atraiu para perto. Durante os procedimentos prévios para operacionalização do amor – se é que me faço entender -, o que tinha sobrado da fogueira, ao sabor do acaso, começou a se mexer. Passado o repentino susto, vimos que, camuflado em meio a toda aquela fuligem, jazia desacordado um corpo humano que começou a gemer. Decidi tirá-lo rapidamente dali para que não se sufocasse ainda mais. Fiquei completamente empanado pela fuligem enquanto tentava extrair informações do rapaz bêbado.

Fulano-de-tal, filho de fulano, Rua do Amparo, Capuchinho. A chave está no bolso – Até então, nunca tinha visto um bêbado tão dócil e com tantos bons modos. Resolvi levá-lo ao posto policial do evento. Nos aproximamos e esclareci o que sabia aos oficiais, que solicitaram a vinda da família. Quando os pais do rapaz, aos prantos, chegaram onde estávamos, expliquei mais uma vez o ocorrido e regressei ao encontro da dama – que, por sua vez, estava com a libido descontrolada e completamente azeda desde que decidi tirar o rapaz da fogueira e deixá-la esperando. Só tive tempo de dizer à mãe do rapaz – ainda gozando do prestígio laboral – que era cronista e parti rumo à frustração de não encontrar minha enamorada no local de origem.

Anos se passaram e levaram junto a minha frustração pela dama e a maior parte das memórias vívidas daquele cadáver ébrio que eu tinha resgatado; mas eis que, recentemente, num posto de gasolina esperando a vez de abastecer meu Corcel, tive a atenção atraída pelo carro que estava em frente e começou a dar sinais de luz e buzinar em minha direção. Os ocupantes no interior do veículo acenavam efusivamente. Cerrei os olhos, mas não identifiquei ninguém, até que, finalmente, desce do carro um senhor, vem até minha direção, estaciona os braços na janela do Corcel e fala:

Meu patrão, fique despreocupado que hoje seu combustível é por nossa conta. Minha mulher ali te reconheceu. – ao longe, também descendo do carro e vindo para perto, acenava uma senhora sorridente. Perguntei sobre o rapaz e a mãe disse que ele vivia sob as condições de um fumante ativo, tamanha a quantidade de fuligem que inalou, mas que estava tocando a vida, com as graças de Deus.

Isso é o mínimo que podíamos fazer por você, meu filho. Além de cronista, é um digno benfeitor que salvou o meu filho – Essas palavras, ao tempo que trouxeram algum pesar pela lembrança do meu status laboral, me reconfortaram pela gentileza genuína, da qual há muito tempo eu não era beneficiado. Amparo e reconhecimento dessa magnitude, até então, eu só tinha visto na oportunidade que almocei de graça em Itacaré, só pelo fato de estar trajando uma camisa do regueiro do bem Sine Calmon – aliás, a comunidade reggae é uma das confrarias mais bem organizadas do Brasil. Mas isso é papo para outra hora.

E foi uma boa festa de São Pedro, uma dama envolvente, um corpo desacordado dentro de uma fogueira e a cortesia feirense que me trouxeram até aqui: Enfim, em Feira – com o compromisso de ser sempre um peregrino atrás dos episódios pitorescos nesta corte real e tentando reacender essa minha centelha de prosador bastardo do acaso – mas com muita cautela, para que não tenha nem risco de sapecar as canela da Princesa.

*Caio Batista é um jornalista baiano que escreve sobre o recôncavo e agora sobre Feira de Santana.


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