Como assim “Recôncavo”?
POR CAIO BATISTA
À minha audiência, meus cordiais cumprimentos. Evidentemente, vocês – da audiência -, estão majoritariamente circunscritos aos limites aqui da Princesa, ainda que esta gazeta tenha uma vasta capilaridade dado o seu formato eletrônico. Pois bem, escrevo para vocês, mas sou, como muitos aqui já sabem, do Recôncavo. Outro departamento, outra capitania, da qual esta corte é COMPLETAMENTE alheia.
Que me perdoem os nativos daqui que ainda insistem em afirmar que Feira de Santana é Recôncavo. Isso é um completo acinte. Existe entre nós um Paraguaçu inteiro de distância e dissociações. Não se trata de soberba ou petulância, é uma questão prática de fatores diversos que fazem com que esta Princesa não seja comportada por nossas plagas. Ainda que uma certa instituição de ensino superior federalizada – do Recôncavo por excelência – faça questão de parasitar esta corte, o que aparentemente pode deslegitimar este parecer, a percepção do pessoal lá do Recôncavo é que Feira de Santana é integralmente sertaneja. E, por lá, nós somos totalmente a favor da autonomia geográfica e cultural de vocês.
Recentemente, porém, após um certo episódio, tendo a reconsiderar algumas coisas no que se refere a essas questões…
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Estava numa temporada de trabalho na Cidade da Baía e, entre um afazer e outro, na pausa para o lanche, conversava com alguns colegas. Éramos quatro de diferentes regiões: Eu, do Jordão; um segundo, de Itaparica; e os outros dois ali mesmo da metrópole. O papo transitava entre palpites sobre o sofrido futebol baiano e, naturalmente, questões gastronômicas relativas ao vigente mês de setembro.
Os nativos de Salvador, autênticas ex-crianças de playground, discutiam sobre qual casa de pasto local servia o melhor caruru daquela temporada. O rapaz de Itaparica, achando uma brecha na já tempestuosa prosa, disse – se virando para mim – que “nós do Recôncavo” não passávamos por esse tipo de situação, já que em todo canto de nossa capitania eram oferecidos carurus de sabor inatacável – e isso sem contar que todos eles tinham o que podia ser chamado de selo “IGS”, ou seja, Identificação Geográfica e Sacra, o que garantia que os carurus do Recôncavo estariam sempre consagrados por Santa Bárbara e os Ibejis (os nossos celebrados Cosme & Damião), e não eram esses carurus sem propósito vendidos em muitos lugares Salvador afora.
Abaixo-assinei para dar fé àquele sapiente discurso, mas não tive como não me ater a um sacrilégio cometido pelo nobre camarada: como assim “nós do Recôncavo”? Desde quando Itaparica é Recôncavo?
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É que eu sou um homem muito polido, como vocês já sabem bem, mas a vontade que eu tive foi de voar nas barbas daquele freguês para ele deixar de ser descompreendido. Ora, Recôncavo… Em Itaparica mal se sabe o que é um Efó de qualidade! Um meninico! Itaparica nunca vai saber o que é reunir em um mesmo boulevard um número sem fim de profetas afro-religiosos, skatistas, quadrinistas, idosos, transsexuais, hippies, universitários e tiktoker’s de forma tão pacífica – sem que seja preciso empunhar NENHUM revólver para ordenar a turba -, como acontece na rua 25, em Cachoeira, por exemplo…
Eu continuo mantendo o meu ardente respeito pelo povo itaparicano; sou muito bem recebido todos os anos quando rumo para veranear por lá; é um lugar muito prestigiado na criação de papa-capim, rinha de galo e outras inofensivas contravenções; mas dizer que é Recôncavo…
E é aí, cara audiência, que entra minha tolerância à Feira de Santana que, se partirmos do princípio do amigo caiçara, tem muito mais gabarito para ser catalogada como Recôncavo do que Itaparica. Um só argumento já sustenta e chancela a Princesa na condição de colônia do Recôncavo: a elementar Questão do Artigo Indefinido. Para se ter uma ideia, o pessoal de Itaparica, indiscriminadamente, vem há alguns usando o abominável artigo definido em nomes próprios, mal tão combatido nas trincheiras do (real) Recôncavo – afinal, é da concordância de TODOS na região, que ninguém vai à casa “DA Raimunda” ou “O Valfredo tomou uma cadeirada no bar DO Damião”; e que o “DE” é uma partícula pétra, que prenuncia, inclusive, a tão atual linguagem neutra.
Na Princesa, pelo menos, se respeita essa questão tão cara à nossa região, se destacando uma prática completamente confusa em relação ao bom senso gramatical, é verdade, – mas de muito bom gosto estético e completamente respeitável – que é o uso do nonsense artigo “O” para tratar da micareta. Todos em Feira “brincam O Micareta”, como deve ser, o que mostra que, além de alinhamento às tradições, por aqui há também um alto grau de autonomia dialética.
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Meu avô, seu Adilino – homem sertanejo, muito experimentado na vida – já dizia que com caiçara não se faz negócio. E faz todo sentido: caiçara começa apertando sua mão e depois tá te oferecendo um passeio de bugre por 400 reais por pessoa, um sanduíche natural e plantando em sua ecobag, à sua revelia, santinho de ex-ator global que agora tem uma hamburgueria artesanal e se candidatou como vereador na pequena aldeia.
Eu quero é ver um Eri Johnson da vida vir trazer terror à população da Princesa com aquelas nefandas sessões coletivas de ioga e futevôlei na Lagoa Grande… Feira de Santana – ainda que não seja Recôncavo – é uma cidade séria, rapaz!
*Caio Batista é um jornalista baiano que escreve sobre o recôncavo e agora sobre Feira de Santana.