Aspectos jurídicos cíveis do caso Kátia Vargas
Hiran Coutinho Jr.
Cláudia Lopes
Neste texto, assim como anunciado no anterior, trataremos, especialmente, das considerações cíveis em decorrência da suspensão do processo de natureza indenizatória interposto pelos genitores dos jovens falecidos. Brevemente, relembro que tecemos considerações acerca do caso da médica oftalmologista Kátia Vargas, inicialmente descritas na primeira publicação desta sequência, disponível neste mesmo blog. (Clique AQUI pra ler o primeiro artigo)
Naquele, realizamos considerações iniciais acerca do acidente ocorrido em 11 de outubro de 2013, quando uma discussão de trânsito evoluiu para um acidente que restou com a morte dos dois ocupantes da motocicleta.
Mais uma vez, vale destacar que este conteúdo é, meramente, informativo. Aqui, não se busca questionar a existência do crime ou a sua autoria, apenas nos resguardamos a uma descrição esclarecedora e respeitosa das consequências daquela fatídica manhã de outubro.
Entrementes, há de se mencionar que o processo penal, ainda que tenha como ponto de partida o mesmo ilícito, via de regra, não forma coisa julgada à seara cível, onde são discutidas as possíveis indenizações. Assim sendo, de logo, destaca-se: searas distintas possibilitam decisões igualmente diversas; pelo menos, em algumas oportunidades.
O que se pretende explicar é que, em que pese a confusão gerada ao crivo popular em decorrência da existência de mais de um processo judicial, estes procedimentos discutem responsabilidades distintas. Enquanto a ação criminal trabalha a possibilidade de privar ou não a liberdade do acusado, à cível interessa o debate acerca de uma reparação patrimonial e, portanto, afastando-se de coerções pessoais. Assim não fosse, o Estado estaria punindo o mesmo indivíduo diversas vezes pelo mesmo fato, o que não é permitido, pois agrediria o princípio ne bis in idem – vedação da dupla punição.
Interpreta-se, consequentemente, que a condenação ou absolvição criminal não obstam uma reparação patrimonial, como no caso em comento e, por isso, repreende o código civil brasileiro ao mencionar que “a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal” (art. 935, CC/02).
O dispositivo acima citado legitima a independência das instâncias, contudo, como exceção, faz ressalvas que vinculam as mesmas. Sendo assim, é possível concluir que as esferas do direito em que pese distintas, não são oponíveis, desde que não se proponha a rediscutir a existência do fato (materialidade) ou a autoria.
Em outras palavras, a prova da existência indiscutível do fato – materialidade – e a determinação de quem foi o seu causante – autoria – não são novamente debatíveis, caso já estejam decididas no juízo criminal. A função deste dispositivo é, justamente, prover segurança jurídica ao sistema judiciário, pois imagine o problema causado se alguém absolvido criminalmente por negativa de autoria (não foi o autor do fato) fosse condenado em outra demanda como responsável pelo mesmo fato. Obviamente, o judiciário se tornaria o palco de antíteses processuais e, consequentemente, de injustiças.
Retornando ao fato em comento, fora proposta a ação de natureza indenizatória ainda em 2014, pelos genitores dos vitimados, com o requerimento de reparação moral pelo dano sofrido. O processo tivera sentença em 2019, quando condenou a requerida ao pagamento de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) para cada autor. Não obstante, a sentença cível é recorrível por meio de apelação, de forma que a defesa da ré apresentou o pleito recursal conseguindo a remessa dos autos ao segundo grau, onde será novamente julgado.
Este processo, então, resultou em uma condenação oposta ao processo criminal, e num período que corriam recursos para a anulação ou não da sentença do Tribunal do Júri. Perceba-se que havia um período de incertezas, muito porque a decisão criminal rechaçava a autoria, causa que já informamos impedir a rediscussão em outro tribunal.
Para evitar tais contradições e uma posterior injustiça, apesar da independência entre as instâncias, é facultado ao julgador cível a suspensão do processo no intuito de aguardar a decisão criminal. Sobre o tema, cumpre destacar um conflito entre o disposto no Código de Processo Penal e no Código de Processo Civil, pois, enquanto o CPP orienta a suspensão processual até o julgamento definitivo da ação criminal – sem prazo definido, o CPC (mais recente), de maneira diversa, propõe a suspensão por, no máximo, um ano. A decisão seguiu a orientação processual penal, suspendendo o processo até a conclusão criminal, logo sem estipular prazo.
A suspensão é essencial para a garantia da segurança jurídica, notadamente em processos de sensível avaliação. Portanto, esperar o trânsito em julgado da ação criminal (ainda em fase recursal) para depois findar a ação civil pode ser uma decisão acertada, levando em consideração a discussão da primeira quanto a própria autoria (inquestionável se decidida criminalmente, conforme a legislação cível).
E, por fim, chegamos ao cerne da decisão que suspendeu o processo reparador. A decisão do dia 18 de julho de 2022, no segundo grau do Tribunal de Justiça da Bahia, não inocentou ou condenou a Médica Kátia Vargas. É, na verdade, uma medida preventiva, conforme descrito neste texto, para que se evite uma irreversibilidade em uma condenação injusta.
Em suma, a sentença do Tribunal do Juri absolveu a acusada por inexistir autoria. Sendo assim, inviável seria uma condenação reparatória, pois completamente contrária ao que já fora decidido pelos jurados. Contudo, não há o trânsito em julgado na primeira ação e, correndo o risco de reforma, prefere-se a suspensão deste procedimento até o termo do outro.
Mais uma vez, não há a intenção de tomar parte a uma ou outra vertente. Entretanto, a legislação define os atos processuais para que se proceda um resultado justo. Neste caso, condenar sem observar o termino do processo penal é certamente anacrônico e, assim, acertada foi a suspensão.
Em linhas de arremate, ressalta-se que os conflitos de interesse devem ser resolvidos, exclusivamente, pelo judiciário. É, dessa forma, um poder indissociável da tutela estatal, consentido ao nome de jurisdição. A nós, em que pese analisar e até mesmo emitir certo grau de opinião, não é devido a palavra final à inocência ou condenação.