As feiras de Feira
Por Daniele Britto*
Institucionalizou-se que, hoje, dia 18 de setembro, é aniversário da cidade de Feira de Santana. Minha cidade e talvez também a sua, que me lê. Motivos para comemorar? Infelizmente, não consigo elencar um que seja.
Antes de me pixarem de pessimista nata ou canceriana dramática, explico: Feira de Santana não envelhece com o tempo. Ela vem desaparecendo em ritmo acelerado, cada vez mais distante dos seus. Uma senhora quase sem memórias e perdida de si. Certamente, já se esqueceu dos povos indígenas que ocupavam este território, os Paiaiás, que foram exterminados sem pudor, em nome da colonização e do desenvolvimento do comércio, claro. Mas, hoje, não vou tão a fundo nas entrelinhas da velha Feira.
Antes que me acusem de retrógrada e utópica saudosista, mais uma vez, explico: a cidade que tem em seu nome a origem da sua concepção e relevância econômica, o grande motivo do destaque entre tantas outras agoniza, em um desalinho que pende entre a incompetência e a irresponsabilidade; entre a subserviência burra a determinados grupos em detrimento de uma coletividade.
Quando me deparei com a já inevitável e sorrateira retirada das barracas dos ambulantes do centro da cidade, mais uma vez, me perguntei: desde quando Feira deixou de ser uma feira? Logo em seguida, no noticiário local, ouvi a frágil justificativa de um Secretário do município que nitidamente não sabe o que faz mas sabe muito bem a quem obedecer.
Tentar desvencilhar a identidade e característica da cidade de Feira de Santana da estrutura de uma feira livre, da alma de feirantes que temos é uma afronta irresponsável que não beneficia nem os maiores interessados nessa “limpeza”. Achar que ser uma grande feira é associar-se ao retrocesso é uma grande prova da limitação técnica e até de capacidade cognitiva, eu diria. Acreditar que é impossível uma harmonia entre o comércio formal e informal é típico daqueles que governam para poucos e não para todos.
Para alguns estudiosos, as feiras livres existem há mais de 500 anos antes de Cristo. Já o comércio informal abriga mais de 60% dos trabalhadores do país! Não há como não levar isso em consideração em uma cidade que se chama FEIRA de Santana. Não dá pra achar que tirar os ambulantes das ruas – solo de qualquer feira – e colocar em um local chamado de shopping (que péssima proposta esse estrangeirismo disfarçado de ascensão) vai contribuir para a mobilidade e fruição das atividades comerciais.
Comparar a fala política (disfarçada de promessa de progresso) do citado Secretário responsável pela retirada dos ambulantes com a de um engenheiro como Allan Pimenta, mestre pelo Masdar/MIT por exemplo, é um nítido exemplo do grande equívoco que é menosprezar o aspecto técnico de uma gestão. E os grandes prejudicados disso tudo são aqueles que não têm como escolher quem ocupa os cargos que não são eletivos; são todos e todas que fomentam e usufruem dessa informalidade característica que não vai morrer jamais!
Esconder as feiras e os informais dentro de uma estrutura fechada batizada de shopping é um apagamento que se repete na nossa história. Já tivemos os chamados currais modelo e já fomos capazes de comercializar, no meio das ruas, mais de 100 mil cabeças de gado em um ano. No gogó, na pechincha. Para onde foi todo esse potencial e essa força comercial?
Ser feirante está nas raízes de Feira de Santana e isso deve ser levado em consideração. Verdadeiramente precisamos de um projeto urbanístico tecnicamente democrático, que leve em consideração o patrimônio imaterial que nos forja. Um projeto inclusivo, feito para pessoas e não para ficar bonito só na peça publicitária do portfólio eleitoral.
É necessário elaborar um projeto multidisciplinar, alinhado com a perspectiva de que a valorização de uma cultura também faz parte do desenvolvimento econômico de uma cidade ou região. Identidade deve ser premissa de qualquer projeto de requalificação e, claro, estar dentro de planejamentos urbanos de médio e longo prazo. Mas, pra isso, é preciso ter competência técnica, executiva e, obviamente, capacidade de dialogar.
Não somos um shopping, my friends. Somos de uma feira.
*Daniele Britto
Advogada e Jornalista
Mãe, feminista, antirracista e aliada na luta contra a homotransfobia
Pesquisadora no grupo Corpo-território Decolonial (Uefs)
Mestranda PPGE/Uefs