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24 de outubro de 2020 - 06h 06m

A gente se acostuma a tudo?

Compartilhamento Social

Por Daniele Britto*

Eu tenho verdadeira fascinação pela escrita de João Ubaldo Ribeiro. Foram em seus livros e crônicas que, por muitas vezes, compreendi e me indignei com a realidade – mesmo que de forma ficcional –  trazida pelos marcadores de classe e raça no Brasil.

Uma das minhas inquietações preferidas trazidas por Ubaldo dá título a uma de suas crônicas (ele era o rei dos títulos!): “A gente se acostuma com tudo”. Na narrativa que é bem pessoal, entre críticas e mandingas, João conta a história de uma muda de pinhão-roxo que importou da Bahia para o Rio de Janeiro, com a finalidade de espantar mau-olhado.

Ele descreve genialmente a trajetória da muda de planta que, inicialmente desenganada, após um período, surpreendeu o escritor e transformou-se em “uma muralha de pinhões-roxos”, pois se acostumou com as diversidades causadas pela partida de Itaparica, pela quase morte ocorrida pelo excesso  de adubo e tantos outros melindres clorofiláticos.

Claro que João Ubaldo não é tão simplório e nem mesmo era dado a escrever metáforas ingenuamente etéreas e transcendentais. Logo após a narrativa do pinhão-roxo ele inicia sua crítica à nossa capacidade de se acostumar com tudo, principalmente com o pior. Sejam leis e benefícios que abracem as classes dominantes, seja a precarização da qualidade de vida do trabalhador ou a degradação contínua do meio ambiente, nós, de fato, nos acostumamos com tudo.

Há quem se acostume com um péssimo relacionamento afetivo, com um trabalho excessivamente burocrático ou com uma sequência de pedidos péssimos que chegaram pelo Ifood. Também existem pessoas que se acostumam a aridez da vida, como estratégia de sobrevivência. Para estas, não há opção: ou se acostumam e se adaptam, ou morrem.

Dentro de um macrocontexto, as mazelas e injustiças sociais, de certa maneira, mantêm-se ativas exatamente pela nossa capacidade de se acostumar. E não falo aqui da empregada doméstica que pega quatro conduções para chegar ao trabalho quase escravo e nem mesmo da família que perde uma criança de 7 anos vítima de bala perdida dentro de casa. Eu falo de mim e do meu universo teórico em curso, falo com os meus colegas de profissão, com a maioria dos amigos, parentes e conhecidos que vivem suas vidas nas quais as maiores preocupações passam bem longe de ter água potável ou comida no prato. Eu falo com quem tem a possibilidade de fazer a coisa, de fato, ser diferente.

Os/As aguerridos/aguerridas, aparentemente, são poucos/poucas. Não são muitos/muitas, também, aqueles/aquelas que utilizam da sua visibilidade e influência para causar aquele desconforto essencial, escancarando a realidade e promovendo aquele diálogo tão incômodo, que pode simbolizar um importante rompimento daquele par com a Primeira Lei de Newton.

O que posso afirmar, sem dúvidas, é que as/os insurgentes somam grandes números. São milhares. Milhões. Talvez estejam só esperando um sinal de que não estão sozinhos/sozinhas. Há vozes que ecoam longe, mas que já estão se aproximando. São vozes potentes que falam de mundos e necessidades, na maioria das vezes, desconhecidas pra mim e pra você. Se você ainda não ouviu nenhuma dessas vozes, em algum momento, vai ouvir.

A verdade, meu querido João, é que tem muita gente por aí que, como você, não se acostuma.

*Daniele Britto
Advogada e Jornalista
Mãe, feminista, antirracista e aliada na luta contra a homotransfobia
Pesquisadora no grupo Corpo-território Decolonial (Uefs)
Mestranda PPGE/Uefs 


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