Sociedade anônima de futebol no país do futebol
Hiran Coutinho Jr.
Cláudia Lopes
Muito provavelmente uma das frases mais embalada pelo futebol brasileiro, aquela que aquece a memória do tetra, que soa longínqua, mas igualmente presente é: “Sai que é sua, Taffarel.”
Ainda quem não nasceu há tempo de presenciar o título mundial de 1994 consegue escutar a voz vibrante de Galvão Bueno aclamando o fantástico goleiro brasileiro. Hoje, quase 30 anos depois do penúltimo título canarinho, o futebol é sensivelmente diferente e o assunto do momento é a Sociedade Anônima de Futebol – SAF. Porém, será que, para os clubes brasileiros, é somente, assim como fazia Taffarel, sair e agarrar a oportunidade ou existem desvantagens na inclusão deste modelo repleto de novidades?!
De maneira preliminar, é preciso esclarecer que os clubes de futebol se apresentam enquanto pessoas jurídicas de direito privado; ser uma associação civil ou uma sociedade não a exime de tal característica. Entretanto, um projeto de lei para conferir uma especial autonomia à estas entidades futebolísticas sempre foi um almejo social e, neste momento, já é possível formata-la como uma sociedade anônima.
Mas entre uma coisa e outra, muito tempo passou. Por um longo período os clubes de futebol brasileiros se formavam como associação civil, ou seja, eram constituídos sob uma personalidade jurídica própria, porém sem fins lucrativos e com intuito social.
Contudo, se enganam aqueles que acreditam que nestes muitos anos nenhuma outra formação era possível. A Lei Zico (8672/93), por exemplo, já previa que as entidades poderiam manter a sua gestão sob responsabilidade de sociedade com fins lucrativos, seguindo seus parâmetros especiais. A Lei Pelé (9615/98), também dispunha que os clubes esportivos poderiam se constituir na forma de sociedade empresária (com fins lucrativos).
Curiosamente, estas normas, que levam nomes de duas lendas do futebol, não eram disciplinadoras somente deste esporte, mas do desporto nacional. A lei da SAF (14193/2021), por outro lado, é ainda mais específica ao tratar de atividades, especialmente, futebolísticas. E esta não é a única singularidade.
Desta forma, surge como consequência um questionamento, qual seja: se uma entidade de futebol já podia se tornar uma sociedade e ter, portanto, seus fins lucrativos bem disciplinados, qual o porquê da nova legislação? A questão fiscal é a que melhor se propõe a explicar estes questionamentos.
A primeira coisa que deve ficar bem delimitada é que o termo “sem fins lucrativos” não é oponível ao faturamento. Os clubes podem e se sustentam dos lucros angariados em competições, bilheterias, patrocínios, etc., o que não se permite é utiliza-lo unicamente como meio comercial para acumular capital e riqueza. Assim sendo, independente do formato utilizado, existirá tributação, entretanto, para aqueles que optavam pelas sociedades, estes encargos chegavam a ser cinco vezes maior do que para as associações civis.
A SAF revoluciona este quesito e aproxima a tributação destas àquelas, tornando, pela primeira vez, economicamente mais vantajoso estar disciplinado em um contexto societário. As sociedades anônimas também possibilitam a integração dos clubes a grandes investidores, a exemplo do Vasco da Gama, Botafogo, Cruzeiro e, muito provavelmente, do Bahia com o Grupo City.
Estas negociações, obviamente, injetam dinheiro, gestão profissional e o mais importante: perspectivas esportivas. Neste contexto, por razões obvias, clubes de renome, mas com dificuldades financeiras, estão tendentes a estas negociações e, talvez, este seja o ponto crítico da questão a ser refletido.
As minucias jurídicas são diversas e nem sempre tão simples de entender. Mas se tem uma coisa que o brasileiro entende é de futebol, e que, o seu time não é só um clube, é quase uma religião. Imagine, por exemplo, como seria se a venda influenciasse na alteração da nomenclatura (como o modelo do Red Bull Bragantino), do escudo, das cores na camisa. Ainda assim seria válido?
Muito provavelmente este não será o destino do Tricolor de Aço, que pretende manter a sua estrutura característica. Mas antes de pensar somente em flores, é bom questionar estes aspectos, entender que os clubes poderão entrar em falência – não era possível utilizar a Lei de Falências às associações –, que os interesses comerciais e financeiros passam a ser prioridade dos gestores, que até podem surgir investimentos inferiores em razão de retornos insatisfatórios, dentre algumas outras questões possíveis.
Neste momento, tudo parece bastante favorável, e, possivelmente, seja a salvação e o início da reestruturação de muitos clubes grandiosos como o Vitória, Santa Cruz, Sport, Portuguesa, Guarani, entre outros que parecem no fundo do poço em razão do “jogo político” que ronda o futebol. Mas, perceba, futebol é, antes de mais nada uma paixão pura, desenfreada e, muitas vezes, a utilização da SAF pode não ser a melhor opção. Portanto, cada situação deve ser individualmente estudada.
O resultado positivo não pode ser alcançado como numa ciência exata e, isso, tranquilamente, pode ser dito. Hoje, um ano após a promulgação da Lei 14193/2021, existem cerca de 24 Sociedades Anônimas de Futebol que anseiam este crescimento vertiginoso. De forma paralela e diversa, outros clubes conseguiram se reorganizar ainda sob forma de associação civil, como é o caso do Flamengo e do Palmeiras, provavelmente os melhores times da América na atualidade.
Sinceramente, não sabemos dizer quem primeiro afirmou que “clássico não se joga, se ganha”, mas é uma sentença que vai além das quatro linhas. Esta é uma disputa clássica, de interesses, de apaixonados, de perspectivas e, não obstante, do futebol do futuro. Contudo, uma certeza não nos falta, a de que independente da configuração jurídica adotada, o que alimenta a paixão do torcedor é a mágica dos dois gols em uma final nos minutos de acréscimos, é o golaço de bicicleta, é a virada espetacular, é o canto da torcida.
Portanto, amantes da nossa nobre arte, cautela! A gestão começa em boas escolhas e termina com belos frutos, ou melhor, com belos títulos.