Câncer e Feminicídio
*Por Daniele Britto
Esta última semana foi marcada pela repercussão de alguns casos de feminicídio na mídia baiana. Eu digo propositalmente “alguns”, pois sabemos que este número não representa a totalidade de casos em todo o Estado no mesmo período. As histórias de Selma, morta em abril de 2019; de Tatiana, morta a tiros na garagem do prédio onde morava no último dia 10/12/20 e de Elba cujo corpo foi encontrado no último dia 11/12/20 em um apartamento em Salvador ganharam o noticiário e, sem dúvidas, mexeram com muita gente.
Um pequeno resumo de cada caso: os suspeitos pela morte de Selma são o seu marido Éden Márcio e a amante dele, Ana Carolina. O caso ocorreu em abril de 2019 mas só agora, por uma série de fatores, o Ministério Público da Bahia conseguiu promover a denúncia na qual, inclusive, se pede a prisão preventiva dos suspeitos. Conforme o laudo necrópsia, o corpo de Selma tinha diversos hematomas no corpo e um edema no cérebro, oriundo, provavelmente, de alguma pancada. Era formada em administração de empresas, tinha 42 anos e duas filhas pequenas.
Tatiana foi morta a tiros na garagem do prédio em que morava pelo ex-namorado, João Miguel Martins, que cometeu suicídio logo depois. Conforme depoimentos de amigas próximas, Tatiana decidiu terminar o namoro depois que descobriu as acusações de violência doméstica que recaiam sobre o namorado que, naquela altura do relacionamento, já apresentava comportamentos que incomodavam Tatiana. Ela tinha 39 anos, era estilista e tinha acabado de se mudar para o novo endereço tentando fugir do ex-namorado que não aceitava o fim do relacionamento.
Elba, como disse acima, foi encontrada morta em um apartamento em Salvador, local no qual também foi encontrado o corpo do seu marido Pompílio Bastos e uma arma. O caso está sendo investigado. Não consegui saber muito sobre ela, pois em praticamente todas as matérias, reportagens e condolências que vi sobre o caso priorizavam a figura do marido, que era prefeito na cidade de Conceição da Feira. Pouco – ou quase nada – se disse sobre Elba. Ela tinha 47 anos.
No último dia 10/12/20 também foi assinado um documento intitulado “Protocolo do Feminicídio”. Consta no site oficial do governo do estado que este é “um documento com quase 200 páginas que traz orientações, diretrizes e linhas de atuação para melhorar todo o processo judicial e de investigação desse tipo de crime”. Não tive acesso ao documento baiano, mas li o “Modelo de protocolo latino-americano para investigação de mortes violentas de mulheres (femicídios/feminicídios)” disponibilizado pela Onu Mulheres e afirmo sem nenhum temor: aqui na Bahia – e em todo Brasil – estamos muito longe de efetivar e promover tais diretrizes.
A Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), da qual o Brasil é signatário, tem como um dos seus 17 objetivos alcançar a igualdade entre os gêneros no que eles chamam de “Por um planeta 50-50”. Destaco que, atualmente, o Brasil também ocupa o 5o lugar no ranking mundial do feminicídio e que durante a pandemia, os casos de feminicídio cresceram 22% em 12 estados do País. Conforme informações da Agência Brasil, no Acre o aumento foi de 300%; no Maranhão 166,7% e em Mato Grosso, 150%.
Muitas e muitos que me leem neste exato momento devem estar revoltados e até assustados com a minha aparente negatividade. Ora, quem já esteve em uma delegacia ou nas unidades de uma “delegacia da mulher” seja como vítima ou acompanhando uma como advogada sabe exatamente do que estou falando. Senhoras, senhores! Estamos no Brasil que, mesmo se sabendo que 39% dos feminicídios são cometidos por arma de fogo, zera o imposto de importação de quê? Armas de fogo!
A colega advogada e doutora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da UFBA, Angela Farias, tem diversas pesquisas, artigos que nos informam, por exemplo, que a catalogação dos homicídios na Bahia não é feita pelo poder judiciário e sim pelo SUS, o que dificulta o alcance do percentual exato de feminicídios que podem ir muito além desta realidade que nos é apresentada.
Outra colega advogada, Lorena Aguiar, apontou, assim como Ângela Farias outro fato importante: ainda se insiste em querer classificar o feminicídio como “crime passional”, ou seja, fazer uso do caso de diminuição de pena sob a justificativa da “violenta emoção”. Feminicídio é crime de ódio e não se deve titubear em relação a isso. Nosso sistema penal é firmado em uma cultura patriarcal, onde teses como esta e tantas outras que desqualificam à vítima ainda são aceitas com facilidade em muitos tribunais do júri Brasil afora.
Além de tudo isso – que representa um percentual ínfimo diante do real – temos um claro projeto de poder que pretende minar todos os avanços acerca dos debates e políticas de gênero (identidade, violência, etc), sexualidade, e claro, raça. Se você se pergunta se é necessário o recorte racial nestes debates envolvendo violência de gênero informo que, conforme o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial, de 2017, jovens negras com idade entre 15 e 29 anos têm 2,19 vezes mais chances de serem assassinadas no Brasil do que as brancas na mesma faixa etária. De uma vez por todas: a morte de mulheres negras e mulheres brancas não são a mesma coisa e, muito menos, repercutem da mesma forma.
Acrescento, ainda, que do mês de janeiro a 31 de agosto de 2020, foram assassinadas 129 pessoas transexuais no país, um aumento de 70% em relação a 2019. O que eu ressalto é que, das 129 vítimas mapeadas, todas tinham expressão de gênero feminina. Estes dados estão disponíveis no Boletim nº 4 de Assassinatos contra travestis e transexuais em 2020 elaborado pela Associação Nacional de Transexuais e Travestis (Antra).
Ser mulher em um país onde em ao menos 12 municípios temos as mesmas ou até mais chances de morrer vítimas de agressão do que de câncer ou de doenças do sistema circulatório – que são as duas principais causas de mortes de mulheres no Brasil – é assustador, frustrante. Dá medo todos os dias. Mas, precisamos seguir em frente.
Mulheres, se cuidem.
Se neste exato momento você se reconhecer como vítima de violência doméstica, denuncie. Peça ajuda. A violência doméstica pode ser física, psicológica, moral, sexual e patrimonial, conforme a Lei Maria da Penha.
*Daniele Britto Advogada e Jornalista Mãe, feminista, antirracista e aliada na luta contra a homotransfobia Pesquisadora no grupo Corpo-território Decolonial (Uefs) Mestranda PPGE/Uefs