Olá, Covid
Por Daniele Britto*
Foram litros de álcool, máscaras descartáveis, máscara de pano, face shield, abraços negados, brindes adiados e uma rotina de espiritualização intensa para não sucumbir aos pés da ansiedade e do pânico.
As crianças ficaram bem guardadas, assim como boa parte da família. A minha mãe (teimosa), nossa preocupação-mor, aceitou a inversão de papéis e obedeceu filhas, filho e a netalhada toda. Mês a mês, o gostinho do brigadeiro de cada aniversário fez uma falta enorme e tivemos que nos contentar e ter paciência com o delay do Google Meet na hora dos parabéns.
Fizemos tudo certinho. Eu passava e repassava instruções incansavelmente e minha mão até despelou de tanto álcool em gel. Já briguei com meu marido Rafael por conta de álcool. Em gel. Sim, eu cheguei a esse ponto.
As crianças não se adaptaram às aulas remotas, então, desistimos dela. Mas não de ensinar. Do nosso jeito, utilizando a criatividade e doses extras de instinto, foi dando certo. Clara já está quase lendo e Tom já consegue desenhar bonecas e bonecos com cabeça, tronco, membros. Até cílios ele coloca. Mas não foi só isso que eles aprenderam. E nem nós.
Nossos trabalhos, atividades acadêmicas e de pesquisa foram todos remotos. Eu tenho certeza que minha hipermetropia aumentou, mas foi uma experiência única. A coluna doendo, o cérebro feliz e o coração emocionado por cada novo aprendizado, por releituras transformadas. Nossa, eu que sou de poucos, fiz tantos amigos na quarentena, isolada. Nem eu sei explicar esse fenômeno de empatia.
Pois bem. O que você pensar, nós fizemos. E também não fizemos o que não deveria ser feito. Aqui em casa formamos um bonde que por nove longos meses conseguiu barrar a Covid-19. Até o último dia 4/11, quando recebi o meu “detectável” no exame. Só eu. Rafael e as crianças, não.
Eu não imaginei que aquela coriza tão comum pra mim (tenho rinite alérgica) e aquela dor de cabeça chata, mas não mortal pudesse significar alguma coisa. Mas eu tive contato com alguém que, depois, descobri que estava contaminada. Não tive paz. Segui os protocolos e bingo: o resultado confirmou o que eu intuitivamente certamente já soubesse.
Estou bem. Estou isolada. Não sei bem o que fazer com essa pausa na vida, se leio, se durmo, se maratono uma série, se apago as fotos inúteis do meu celular ou tudo isso. Trouxe para o quarto o computador, caderno, livros, minhas canetas coloridas mas ainda estou confusa, pois não me sinto tão doente. Claro que isso me alivia, mas é estranho.
Comecei a pesquisar mais sobre os estudos da Covid-19 e me assustei com os dados sobre a reinfecção. Descobri que os assintomáticos têm maior probabilidade de se reinfectar e algumas pessoas que tiveram sintomas severos não produziram anticorpos. Li, cansei o Google e entendi que, verdadeiramente, não se sabe quase nada. Parei pra não pirar. Não é o momento.
Estou um pouco cansada, agora. Meu corpo está implorando para deitar. Pra mim é um pouco constrangedor dizer isso, confesso. Penso em tantos que não puderam – e nem poderão – se cuidar como eu faço agora, ou que morreram antes de entender o que estava acontecendo.
A todo momento recebo instruções, carinho, mensagens e tudo que intensamente alimenta a imunidade. Até vitamina C já ganhei. Minhas crianças pensam que estão de férias na casa da avó, mas estão cientes que a mamãe tá “dodói com coronavírus”. E que permaneçam assim, amenos. Não precisam ter sobre os ombros e cabecinhas a penumbra dos respiradores ou enterros sem parentes. É demais.
A única certeza que tenho nesse momento é que, pra mim, ter Covid-19 não significa que acabou. Para minha sorte, é só uma pausa. Em breve voltaremos com a (intensa) programação normal com direito a renovação do estoque de máscaras e regada a muito álcool em gel. Esse looping tá longe de acabar.
Se cuidem.
*Daniele Britto
Advogada e Jornalista
Mãe, feminista, antirracista e aliada na luta contra a homotransfobia
Pesquisadora no grupo Corpo-território Decolonial (Uefs)
Mestranda PPGE/Uefs