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Feira de Santana / 04 de setembro de 2020 - 07h 04m

Quem é o inimigo?

Compartilhamento Social

Por Daniele Britto

Quem me conhece sabe o quanto gosto de Clarice Lispector, principalmente das crônicas escritas por ela. Pra mim, é ali que se conhece a subjetividade questionadora e a grandeza de Clarice. Todas estas publicações estão reunidas no livro “A descoberta do mundo”, título também de uma crônica sensacional publicada em julho de 1968 no Jornal do Brasil.

Mas não é desta crônica que quero falar, agora. Quero falar sobre “É preciso também não perdoar”. Pode parecer um título rancoroso, mas, acreditem, não é. Essa crônica curtíssima não fala das mágoas bobas com as quais, muitas vezes, perdemos tempo. Fala sobre quando o inaceitável violentamente nos machuca – ou a um dos nossos. De forma pessoal ou institucionalizada.

No texto, Clarice fala sobre uma entrevista dada por uma ex-prisioneira de guerra à BBC inglesa, na qual a entrevistada ao mesmo tempo que expõe suas dores, pondera e busca compreender as fraquezas de quem a manteve em cativeiro. Louvável. Mas, assim como Clarice, acredito que não dá para fazer isso o tempo todo. Ou sempre. Destaco o meu trecho favorito: “Sei o que ela quis dizer, mas está errado. Há uma hora em que se deve esquecer a própria compreensão humana e tomar um partido, mesmo errado, pela vítima, e um partido, mesmo errado, contra o inimigo”.

Quero aqui tomar publicamente um partido e te convidar [ou convencer] a fazer o mesmo, antes que seja tarde. Talvez já seja, na verdade. Mas, eu vou tentar. Por Clarice.

Nos últimos dois anos, a imprensa brasileira vem sofrendo ataques veementes à sua liberdade constitucionalmente garantida. Claro que este não é um fato inédito na nossa história e muito menos exclusividade do Brasil. Porém, a artilharia institucionalizada e até militarizada vem com um alvo específico e muito claro: tornar a imprensa inimiga do público. Esta é a guerra.

Eu, quando jornalista, há muito joguei pela janela o mito da imparcialidade. Olha, isso não existe, tá? Todo ser humano é parcial. Do árbitro de futebol, ao juiz togado. Da minha e da sua mãe,  ao Papa. Do grupo econômico que comanda o grupo de comunicação ao repórter que está nas ruas, todo mundo é parcial. A pergunta é: de que lado se está?

Atacar a imprensa é diferente de se criticar a imprensa. A crítica é livre, pode ser uma opinião fundamentada ou quem sabe, uma teoria da conspiração divertida. Criticar é um ato de liberdade, desde que se respeite, claro, premissas básicas. O ataque, por sua vez, é bem diferente. Todo ataque visa destruir, extinguir algo ou, no mínimo, desestruturar. Atacar pressupõe a existência de um inimigo que necessariamente precisa ser exterminado para garantir uma existência pacífica e homogênea. Para que se propague apenas uma verdade [que pode ser uma grande mentira].

No âmbito político, atualmente, a formação de exércitos que se distribuem virtualmente e presencialmente para impedir o trabalho da imprensa é algo preocupante. Este tipo de estratégia intimidatória  – e também burra, diga-se – merece todo repúdio e combate efetivo, já que além de querer impor uma visão unilateral dos fatos não se vale daquele espaço para apresentar qualquer prova contrária ao que está sendo pautado. A única versão oferecida é a violência e a truculência digna dos que não querem dialogar.

Me espanta a inabilidade cênica daqueles que invadem comentários em determinadas reportagens ou denúncias publicadas para falarem bem de uma determinada pessoa, em especial políticos. A argumentação se assemelha a uma idolatria adolescente por um artista ou personagem. Mas, nem todos são risíveis e inofensivos. Alguns tem muito a perder (seus cargos atuais ou futuros) caso venha à tona o que possivelmente deveria estar debaixo do tapete.

A solução para ninguém cair e tudo continuar do mesmo jeito é uma só: eleger como inimigo os que, de um jeito ou outro, levam a dúvida e expõe a imagem de quem já é uma figura pública passível de análises e críticas diversas. E quando se exerce uma função pública, ainda podemos acrescentar a fiscalização.

Não esqueçamos a quem pertence as grandes concessões públicas de rádio e TV do país, bem como grande parte da mídia impressa: políticos e empresários. Empresários e políticos. É uma guerra de poder e pelo poder. Mas, jornalismo não é só isso e nem nunca será.

Portanto, não adianta querer cercear ou invalidar o trabalho jornalístico achando que, desta forma tudo se resolve. Neste momento, falo com os/as ”generais” destes exércitos, não com os soldados. Se é mentira, prove. Se há licitude em determinado ato, apresente contestação adequada. Se existe um direcionamento exacerbado e inverídico de conteúdo, demonstre pelo instituto do direito de resposta. Se exponha, meta a cara ao invés de mandar os soldadinhos levarem chumbo por você.

Querer acabar com a liberdade de imprensa é algo que não se deve perdoar e muito menos aceitar. A modulação da atividade jornalística é inaceitável e compromete a função social do jornalista. Nessa história eu já tomei o meu partido, com a aprovação de Clarice, certamente. Eu não perdoo quem quer silenciar a imprensa. Para que fique claro, uma última observação: a depender da sua escolha, a vítima pode ser você.

*Daniele Britto
Advogada e Jornalista
Mãe, feminista, antirracista e aliada na luta contra a homotransfobia
Pesquisadora no grupo Corpo-território Decolonial (Uefs))
Mestranda PPGE/Uefs


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